Sobre a nossa consciência negra de todo o dia

Semana passada minha filha de 8 anos estava assistindo a uma série infantil sobre o cérebro humano[1]. Num dado momento da série, se falou em cérebro, sistema de confiança e associação.

De acordo com a narrativa, nosso cérebro identificaria pessoas, situações ou circunstâncias que gerariam em nós um sentimento de confiança maior. Ou o contrário: situações ou circunstâncias associadas a traços negativos e de desconfiança.

Vejam bem: sou advogada trabalhista, não entendo de neurociência. Tentar entender o meu cérebro já me dá muito trabalho. Mas vê-la assistir à serie me fez refletir sobre uma situação vivida em 2012, quando fiz minhas primeiras audiências trabalhistas.

Apregoar a parte reclamante no saguão da Justiça do Trabalho é uma tarefa que envolve boa entonação da voz e muitas vezes paciência, misturada com a esperança de que a parte chegue logo. As advogadas e advogados devem concordar comigo.

Chamei a reclamante algumas vezes. Nada. Até que visualizei uma senhora debruçada sobre o vidro da janela de uma das salas de audiência. Me dirigi até ela e questionei se ela era a “minha” reclamante. Ela me olhou de volta, me mostrou sua carteira da OAB e me questionou: por que tu achou que eu era tua cliente? Respondi: Porque costumamos pedir que nossos reclamantes que esperem nesse local.

Nossa conversa terminou rapidamente. Eu chateada com a devolutiva. Devolutiva que eu só consegui compreender 7 anos depois. Em 2019 eu me debrucei sobre aquele acontecimento, sobretudo sobre a minha incapacidade de compreensão, naquele momento, ao associar aquela senhora a uma reclamante. Aquela senhora era uma mulher negra, como eu.

Agora, em 2023, eu consigo reconhecer o racismo, fazer essas associações sobre o lugar que a sociedade destina a determinadas pessoas. Que colocação profissional alguns corpos podem ou não ocupar. Quem pode ser o assaltante. Quem pode ser réu. Quem pode. Quem é. Quem pode dormir nas ruas. Quem não poderia dormir nas ruas. Quem pode ser vendedora. Quem pode ser cliente. Quem pode comer num restaurante caro. Quem pode servir num restaurante caro. Quem pode pagar. Quem não pode nem entrar na loja. Quem pode ser o entregador da comida. Quem pode ser o chefe de cozinha?

E mesmo quando ultrapassada a questão do lugar que ocupamos, quando conseguimos ocupar um lugar que não deveria ser o nosso, ainda assim nos deparamos com o não lugar.

O não lugar não é apenas o espanto ao ver a médica negra, a juíza negra, a psicóloga negra, a engenheira negra. A arquiteta negra. Tampouco a ausência de espanto no fato de que o trabalho doméstico seja majoritariamente desempenhado por mulheres negras. Que os profissionais da limpeza urbana sejam em sua maioria negros. Que as maiores vítimas de violência doméstica sejam negras. Que as maiores vítimas da letalidade do Estado sejam homens negros.

Nas palavras de bell hooks na obra Irmãs do Inhame[2], quando uma pessoa negra ultrapassa essas fronteiras é como se ela devesse se acostumar às punições merecidas. Ao ultrapassar aquele limite profissional, o preço psicológico cobrado requer que alimentemos e renovemos nosso espírito para descansar, relaxar e se recuperar. Que encontremos apoio e suporte umas nas outras. Uns nos outros. E ela cita McClain em “O fardo das pessoas negras de classe média”:

“Sou diariamente sobrecarregada com a necessidade de mostrar às pessoas brancas que as pessoas negras são pessoas. Eu sou, no antigo jargão, um orgulho para a minha raça. Sou guardiã dos meus irmãos e das minhas irmãs, mas fui abandonada por parte da minha gente, por pessoas que acham que eu as abandonei. Eu me vejo em um corredor polonês entre dois mundos, e sou amaldiçoada e abençoada por ambos. Eu transito, observo e faço parte de ambos; e também posso ser usada por ambos. Sou uma corda em um cabo de guerra. Se eu sou uma cota no meu escritório no centro, eu também sou uma cota no chá da igreja do meu primo. Eu mitigo a culpa branca. Eu recuso a inadequação das pessoas negras e provo para a geração do meu pai e da minha mãe que sua paciência era, de fato, uma virtude[3]”.

O Dia da Consciência Negra, celebrado hoje, é sobre a nossa consciência em relação ao racismo que nos é perpetrado. Sobre o direito de ocuparmos todos os lugares e espaços. Sobre descobrir quem somos e a nossa potência, sobretudo quando ocupamos uma posição, muitas vezes solitária. Mas também, é o dia no qual as pessoas brancas deveriam se ocupar em mudar sua consciência no tocante às pessoas negras. Revisitando seus padrões associativos e de comportamento. Revisitando a origem dos seus estigmas e preconceitos.

Livia Prestes

Advogada Trabalhista

Presidenta do Conselho Deliberativo do Instituto de Acesso à Justiça

@iaj.instituto


[1] A Vida Secreta da sua Mente. T1 E3: Inclinações. Série lançada por Pictoline e Cartoon Network. Ano 2023. Disponível no Cartoon Network e na HBO Max.

[2] Irmão do Inhame: mulheres negras e autorrecuperação. bell hooks. Tradução Floresta. 1 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Forense, 2023.  Pg. 127.

[3] The Midle – Class Black’s Burden [O fardo das pessoas negras de classe média], 1980. Obra citada na página 128.

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